Art in history, History in art | A conversation with Tiago Sant’Ana - Bubblegum Club

A arte na história | uma conversa com Tiago Sant'Ana

Tudo que aconteceu no mundo faz parte da história, mas não necessariamente está na história. O que escutamos aprendemos, passa pelo “filtro” de quem conta (que muitas vezes está numa posição muito privilegiada). Isso reflete no que enxergemos. Temos uma visão pautada no que decidiram, em algum momento, nos mostrar. Cria uma distância, ainda maior, do que já era distante.

A arte tem grandes capacidades mundo afora. Com o tempo, seus direcionamentos vão mudando. Pouco provável de uma obra da idade média ter as mesmas intenções, questionamentos e direcionamentos de uma arte moderna. Isso porque a arte acompanha a história, ela faz parte disso. A presença da história na arte é inerente. Cabe ao artista decidir o que contar, como contar, assim como o que questionar. Aos poucos a arte se torna presente em tudo. O papel da arte na sociedade e na história é claro.

Pensando nisso, o trabalho de Tiago Sant’Ana cria uma potência contemporânea magnífica. Sua relação entre esses temas demonstra a capacidade de dialogar e questionar através do fazer artístico e da exposição da arte.

Em uma conversa comigo para a Bubblegum Club, o artista Tiago Sant’Ana fala sobre seu trabalho, a importância da história afro-latina na arte e os acontecimentos entre a arte e a sociedade que marcaram o pensamento artístico e colonial de 2020.

Grande parte da produção de livros de história do Brasil, filmes e novelas, mesmo sendo brasileiras, parecem ser extremamente canonizadas. A narrativa é muito semelhante com a que é contada pelo colonizador. As suas obras têm uma capacidade muito grande de contar a história pelo colonizado, de enaltecer e trazer à tona o relato que foi apagado. Isso fica claro em suas performances nos engenhos de açúcar. Como é a possibilidade de poder re-contar a história, usando a arte como instrumento de visualização do apagamento?

Tiago Sant’Ana: A História, como toda construção de conhecimento, é um campo de poder. E, por sua vez, está intrínseco ao processo de composição da História a posição social de quem olha para os fatos. É um campo em que precisamos disputar narrativas pois é a partir dele que conseguimos dar conta de entender quais memórias serão preservadas e quais serão deixadas ocultas. Eu acredito que quando pensamos na história do ciclo de açúcar acontece exatamente isso. Foi uma narrativa criada a partir de um ponto de vista eurocêntrico, que entendeu a expansão colonial como um grande benefício para o mundo, trazendo o progresso para as Américas. No entanto, quando esmiuçamos minimamente essa história da “glória colonial” percebemos que ela foi estruturada por meio de violências e pelo julgamento que os modelos eurocêntricos de vida deveriam ser tomados como parâmetro para toda e qualquer sociedade. É exatamente por causa disso que ainda hoje a ferida colonial está aberta, são consequências que podem ser sentidas atualmente porque as diferentes subjetividades e formas de organização social que fogem ao modelo da branquitude eurocêntrica, sobretudo as de origem negra e indígena, foram julgadas como não-humanas ou passíveis ao extermínio.

A arte, nesse sentido, tem um papel fundamental que é o de processar essas imagens construídas pelo imaginário colonial. É um exercício de imaginar que onde a história oficial vê uma pessoa escravizada, nós vemos um guerreiro que lutou até o fim pela sua vida. Onde a história oficial conta o fausto e a glória de erguer um engenho de açúcar, nós enxergamos uma refinada máquina de extermínio. É um olhar em perspectiva que tem como estratégia principal o estranhamento.

Dentro do meu universo poético, os engenhos de açúcar não são enxergados somente do ponto de vista físico, da arquitetura, mas também como locais capazes de nos contar uma outra história através dos dados energéticos, de camadas do invisível. É olhar para as bases sólidas do engenho – hoje, muitas em ruínas – e não enxergar o dado estático, mas sim as forças que durante séculos fizeram aquele engenho ter movimento. Quando eu realizo ações nas ruínas de engenho de açúcar, eu estou rememorando gestos e ações do passado com o objetivo de purgar essa dor dos meus ancestrais e transformá-la numa energia criativa e não mais de sofrimento.

Refino II, 2017.

Nós somos um dos maiores exportadores de açúcar do mundo. Mesmo com a abolição da escravatura em 1888, continuamos vendo suas marcas. Os escravos, assim como seus descendentes, enfrentam enorme dificuldade de se igualar à sociedade. Uma das formas que você usou para representar isso foi a sua obra Sapatos de Açúcar. Pensando no mundo de hoje (onde encontramos nao só no Brasil, mas como em outras partes do mundo, um apagamento da cultura e um genocidio negro) como voce acha que se coloca a cidadania e os direitos da populacao negra?

Tiago Sant’Ana: Os Sapatos de açúcar talvez componham uma imagem síntese do meu trabalho como artista. Ali, os sapatos que eram símbolo de distinção racial, já que as pessoas escravizadas não podiam ter os seus pés calçados, são compostos pelo material que é o próprio algoz da população negra no Brasil: o açúcar. É uma imagem contraditória porque é um sapato impossível de calçar, mas que também é frágil, assim como a metáfora que aquele calçado representa: a liberdade. Uma liberdade e uma cidadania completamente precárias porque o pós-abolição brasileiro foi um processo sem reparação social. Pelo contrário, as políticas pós-1888 vão caçar a todo custo, até mesmo através de experimentos eugênicos, a presença da população negra nos espaços das cidades. Os direitos da população negra no Brasil, em termos de políticas públicas, acontecem muito tardiamente. O sistema de cotas nas universidades, por exemplo, foi uma conquista muito difícil, ainda assim com oposição de muitos ditos intelectuais. Mas, gera uma consequência importante e profunda, principalmente por uma mudança de subjetividade negra.

Da-série A-invenção da iberdade, Free black girl; 2019. 

Acredito que a mudança de posição social das pessoas negras está cada vez mais intensa porque a população negra está com pressa e está cansada. E tem pressa porque nossas crianças negras continuam nascendo ainda hoje numa sociedade completamente hierarquizada racialmente. Mas também porque conseguimos criar zonas de fuga dentro de um sistema feito para que continuemos repetindo um repertório colonial.

Ainda assim, há muito que ser feito porque ainda continuamos sendo a maior população carcerária no Brasil, porque continuamos tendo as pessoas negras em condições de subemprego, porque nossa aparência ainda é julgado como não sendo “a ideal”, porque no cenário artístico muitas vezes limitam a nossa produção a um único nicho (ou sequer está incluída na categoria “arte”).

Da série Sapatos de açúcar, 2018.

Em 2020, tivemos o caso da derrubada da estátua de Edward Colston, um dos maiores comerciantes de escravos (slave traders). Colston ficou extremamente rico com os seus interesses comerciais e plantações de açúcar na Ilha de São Cristóvão. Para construir sua reputação, ele doou grande parte desse dinheiro para organizações filantrópicas em Bristol. Essas, por sua vez, construíram e espalharam estátuas de Colston após sua morte, que aconteceu em 1721. Estamos presenciando um momento que aos poucos estamos tendo uma maior conscientização da história por si mesma, não pelo que foi contado. Você acha que a arte contemporânea ajudou nesse processo da sociedade?

Tiago Sant’Ana: Eu acredito que os monumentos são uma ótima imagem para pensarmos na construção de uma história colonial. Porque os monumentos públicos, inclusive no Brasil, apesar de serem quase sempre sóbrios, são a materialização pública da violência daqueles que tiveram o poder de decidir a história. As imagens de derrubadas de monumentos racistas serão eternizadas na história como um momento de inflexão. Muitas pessoas acham uma ação exagerada, mas eu sempre digo que é como você ter dentro de sua própria casa um grande altar para uma pessoa que te fez profundamente mal e que, diariamente, você precisa passar por ele e notá-lo. Por um lado até pode ser bom porque assim organizamos nossa raiva e entendemos o que precisamos combater. Por outro é a violência escancarada inserida na vida cotidiana e ela foi feita com grandiosidade monumental para ser notada. Os monumentos têm efetividade porque ele tem uma função performativa: é algo que absorvemos pela repetição ritualizada de ver aquela presença monumental na cidade. É um exercício de todos os dias assegurar qual é o seu lugar social (o de estar em tamanho menor, o da subalternização). E aí você questiona sobre arte e devemos lembrar que monumentos foram criados por artistas. Então, a arte só não basta para combater as desigualdades. É preciso que os agentes produtores também mudem. Mas, concordo que a arte contemporânea está sendo um campo muito interessante porque cria muitas vezes imagens que nos permite pensar em fugas a esses monumentos. Ou mesmo criar outros tipos de monumentos. Ou satirizar esses monumentos coloniais, revelando o quanto de exagero tem ali, o quanto que a máquina colonial se esforçou para ressaltar a importância de alguém ao ponto de eternizar a sua presença em escala tão diferente da humana. É o próprio delírio colonial.

Da-série A invenção da liberdade, 2019.

Da série Açúcar sobre capela, 2018.

Refino IV, 2017

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