Cantores e artistas negros brasileiros estão “finalmente” falando sobre amor e carinho em suas músicas e obras. Para além de estereótipos, masculinidade, patriarcado, racismo e censuras, a contínua quebra de barreiras aliada ao recente acesso o poder, mercado e, sobretudo, narrativas de protagonismo e vaorização, mais pessoas podem se orgulhar de seus trajetórias e conquistas coletivas.
Inauguramos um momento em que artistas podem navegar por uma diversidade de temas com autonomia e tranquilidade.
Hoje cantam, dançam, pintam amor e carinho, além de racismo, violência e morte – porque esses são, também, urgentes.
Cantores como Baco Exu do Blues e Larissa Luz – assim como Bivolt, N.I.N.A, Ludmilla, Tasha & Tracie, Emicida, Criolo, Marabu, Kaê Guajajara – abraçam esse projeto de falar sobre amor sem limites.
Além de artistas como Bernardo Conceição, Caio Rosa, Larissa Souza, Heloisa Hariadne, Yedda Affini, Fernanda Souza, Silvana Mendes, Helen Salomão, Wendy Andrade, que se entregam para reconstruir narrativas e possibilidades para comunidades negras e suas relações com o afeto e o amor.
Usam a vulnerabilidade para se libertar de estereótipos e associações limitantes e racistas como “raivoso” e “violento”, intimamente ligados à forma como as respostas desses corpos são lidas pelas estruturas e lógicas coloniais.
bell hooks ensina, no texto “Sobre os usos da raiva”, que “mulheres respondendo ao racismo significa mulheres respondendo à raiva; a raiva pela exclusão de privilégios inquestionáveis, distorções raciais, silêncio, abusos, estereótipos, defensividade, nomes errados, traição e cooptação.”
E a intelectual afirma que “enquanto a raiva negra continuar sendo representada apenas como maligna e destrutiva, não teremos a visão de militância necessária para uma ação revolucionária transformadora”. Assim, ela sugere e coloca a raiva como uma ferramenta de positivação, enfrentamento e emancipação.
E essa ampliação e conquista de liberdade e autonomia só é possível se avaliarmos a trajetória do rap e do funk no Brasil e o seu impacto hoje. O ponto de partida para esse movimento começa com os Racionais MCs, no disco Raio X Brasil, de 1993, seguido pelo clássico Sobrevivendo no Inferno, de 1997 — considerado por muitos o disco mais importante do rap brasileiro.
Esses discos inauguraram, para um grande público, o hip hop como música de denúncia e crítica — neste caso, especialmente voltada para a periferia de São Paulo. Suas faixas ainda são hinos do rap brasileiro e, por serem tão poderosas, tornaram-se essenciais para que muitos jovens tenham seu primeiro contato com formações políticas.
Eles foram alvo de muitas críticas, censuras e violências — e isso ainda ocorre, principalmente em manifestações como os bailes funk — e abriu espaço e contexto para que tudo coexistisse e se multiplicasse hoje.
São movimentos que cunharam um conceito de orgulho e reconhecimento, como afirma o pesquisador Tiarajú Pablo D’Andrea em “A formação de sujeitos periféricos: cultura e política na periferia de São Paulo”, sua tese de doutorado da Universidade de São Paulo. O sociólogo explica que “periferia passou a designar não apenas pobreza e violência, mas também cultura e poder.”
E se o hip hop brasileiro decola em várias direções hoje, é preciso reconhecer o peso de nomes recentes na cena, como Jup do Bairro, Enme Paixão e Sodomita. Mulheres que se identificam como parte da sigla, ao mesmo tempo que rechaçam o rótulo de uma música LGBTQIA+. As músicas e suas letras são um termômetro social e a atual expansão de temas e perspectivas é reflexo de uma resposta à demanda e luta por espaço e liberdade.
A putaria, por exemplo, era dominada pelos homens falando sobre os corpos das mulheres e hoje, por meio de senso de humor e boas doses de feminismo da vida real, ocupam o espaço e a missão complexa de construir uma narrativa própria para corpos objetificados e socialmente violentados.
No começo, “as temáticas sexuais pareciam a única forma possível para que essas mulheres fossem ouvidas dentro de uma estrutura patriarcal do mercado, tornando tênue e difusa a fronteira entre a objetificação patriarcal e a liberdade da autoexpressão sexual”, como escreve o pesquisador musical GG Albuquerque, fundador do portal O Volume Morto, no artigo Carol e o borogodó: sexualidade como força vital.
Ele segue dizendo que hoje esses corpos não se calam e comunicam seus desejos e subjetividades “trazendo para si o desejo pulsante como detonador de normas e estruturas de submissão, encontrando em si mesma, no seu próprio corpo, a fonte renovadora do caos”.
Na arte, vale ressaltar movimentos de ruptura e transformação protagonizados por artistas, criativos e curadores negros independentes, sem grandes apoios mesmo e que estão movendo as estruturas da arte brasileira a partir de seus projetos e conexões — Carollina e Jaime Lauriano, Amanda Carneiro, Hélio Menezes, Diane Lima, Nathalia Grilo, Ode. E a HOA Art, da galerista e multiartista Igi Ayedun, primeira mulher preta a fundar uma galeria no Brasil e que hoje está também em Londres e no circuito global representando artistas jovens, negros e latinoamericanos.
Como diz Igi, “a realidade é uma lacuna dos sonhos” e por meio da circulação e valorização dessas narrativas ela constrói fragmentos e projetos de liberdade.
Beatriz Nascimento descreve os quilombos como “instituições africanas no Brasil” e “sistemas alternativos de organização de negros e outros corpos dissidentes”.
Assim, a cultura negra não é apenas uma questão de influência, é a origem e a base dos gêneros, expressões, ritmos e estéticas musicais mais reproduzidos e consumidos no mundo. Funcionam como os novos quilombos contemporâneos de hoje ao criar novos sistemas de pertencimento e diálogo para esses corpos.
Além de institui afeto como centro e projeto radical contra a presença constante da morte. Tecnologias, construções e linguagens que se expandem para gerar conforto, liberdade, celebração. Entender quem cria narrativas no presente é entender o que se planta para o futuro – de afeto e logo ali.