Fiction in the art of Adriano Machado - Bubblegum Club

A ficção na arte de Adriano Machado

A ficção e a arte caminham lado a lado. Uma não depende da outra, mas acho que ficam mais bonitas próximas. Em suas junções a imaginação é provocada e a capacidade de inventar e criar se torna nítida. Tudo isso nos leva a grandes capacidades de significância e significado, mas principalmente de nos tocar. São territórios inventivos visuais e verbais, mas de grande capacidade de espelhamento e de identificação. Com o termo do próprio artista, os territórios afro-inventivos de Adriano Machado, carregam a identidade afro-brasileira, a cultura da oralidade e materialidade, a memória e principalmente o imaginário criado em suas obras. Em uma conversa comigo para a Bubblegum Club, o artista visual Adriano Machado percorre esses temas quanto a sua produção fotográfica e visual.

As suas fotografias exploram uma crueza muito grande, são demasiadamente reais e ao mesmo tempo ficcionais. Suas imagens nos convidam a ver a realidade de forma conceitual. Elas demonstram a sua própria geografia, o território. Como é o processo de exibir algo tão palpável?

As minhas fotografias têm um pé entre a ficção e a vida quotidiana visível, uma vez que as duas visualidades são a mesma face. A palavra rudeza leva-me a pensar em dois lugares que não sei se realmente ocupo. Embora concorde com o não intencional em relação à criação de um cenário para as fotografias – mas sim, uma cena que organiza elementos quotidianos para reinventar o próprio local a partir do qual crio a narrativa – e mais para dizer sobre as pessoas com quem vivo. Gosto de pensar que invento território a partir da minha existência, o pensador Milton Santos ensinou-nos tão bem sobre isto. Tal como as fotografias que faço são inventadas a partir da observação da vida quotidiana daqueles que trocam comigo, a fotografia – esse terceiro lugar, chamo agora territórios afro-inventivos – nessa geografia da vida é [onde] eu transito.

As imagens partem de uma inquietação; primeiro a memória da família, depois o tema da natureza morta ou da minha vida quotidiana entre as cidades do interior da Bahia: Feira de Santana, Alagoinhas, Cachoeira, e mais tarde, Salvador, a capital da Bahia. Gosto de pensar que as imagens são vislumbres do meu quintal, que exponho juntamente com os meus primos que dão corpo às personagens que crio, e as experiências que são nossas. Dizer do nosso desejo de vida é um ponto, o outro é a relação, daí vem o convite para que fotografem comigo. Organizo assim a ideia de ensaio e em conjunto com o meu processo de recolha, armazenamento, observação, escuta; controlo o silêncio e ponho as mãos na máquina fotográfica ou outros processos que conseguem apontar este território.

Em seus trabalhos a ancestralidade é nítida, assim como sua família e suas histórias são muito presentes também. Ele esbarra entre as memórias pessoais e memórias coletivas. De que modo você vê o papel da sua obra em potencializar não só aquilo que é somente seu, mas de explorar uma realidade brasileira?

O meu primeiro trabalho organizado como uma série chama-se Cobra Verde, com ele criei [em forma fotográfica] usando as memórias dos meus avós. Construí imagens que surgiram dos relatos que me contaram das suas vidas a partir dos anos 40 na cidade de Feira de Santana-BA. Para desenvolver este projecto, fiz um curso sobre como criar uma árvore genealógica e também me sentei para ouvir as mulheres mais velhas da minha família, operárias, lavadeiras, e feirantes. Elas entraram nos seus corações – sacudindo nomes e imagens de pessoas que já não estão aqui, soprando o pó do seu rosto e coisas quase apagadas, promulgando silêncios, lembrando dores, olhando para lugares felizes e doloridos. As suas histórias são uma peça de um puzzle que este país conhece mas nega. A força, a dinâmica e as estratégias ancestrais das mulheres negras levaram-nos até aqui. A minha mãe Edna Conceição diz que “sonhar com o verde é sempre uma coisa boa”.

Se a partir de um sonho e da sua força de imagem, o movimento para se manter numa terra devastada como o Brasil foi mantido pela minha família… o sentimento resiliente, além de mágico e real, não é exclusivo desta família, faz parte de uma história, muitas vezes subalterna, fetichizada, folclórica sobre a vida destas pessoas. De certa forma, não conto apenas a história da minha família – pois faço parte do meu tempo – e nesse tempo, é inegável que o ser Negro na diáspora brasileira, especialmente na Bahia; a Roma Negra, apática, em colapso e incendiada, continua a ser alvo de delírios atrozes e negações do estado genocida brasileiro. Nesta condição, as rasuras da história ou a tentativa de aniquilar um protagonismo visual e intelectual da nossa própria experiência está latente. Acontece normalmente que as pessoas vêm ter comigo durante as exposições para falar sobre como se lembram das suas mães e avós quando vêem as fotografias ou se lembram dos seus quintais, é muito bonito poder olhar para essas reflexões.

O seu trabalho “estudos sobre a natureza morta” resignifica os conceitos de morte e pensa em um corpo Negro que é objetificado e artificilaizado. Isso é uma estrutura de séculos, que é apoiada por um movimento de apagamento da história do Negro no Brasil. Uma divisão da sociedade colonial que continua até os tempos de hoje. Você acha que o conceito de morte do Negro e seu papel social no Brasil mudou dos tempos da colonizacao até os dias atuais?

A natureza morta como género na história da arte ocidental está altamente desenvolvida no Brasil, inclusive por grandes pintores Negros brasileiros como Arthur Timotheo da Costa e Yêdamaria. Comecei a desenvolver estudos de natureza morta por desejo de imitar o gesto pictórico, repetir um tema à exaustão e estudar a imagem em vários cenários e o tempo em suspense. Estou mais interessado no termo natureza-morta, ou ainda suspenso, na minha tradução livre. Este lugar me interessa ou traduz mais do que a natureza morta, apesar do jogo tautológico apontar caminhos óbvios nas imagens. As imagens sugerem um ambiente de passagem – carregado de outras presenças, antigas e novas, de vários territórios que me atravessam. A reorganização de uma espécie de crítica ou de olhar atualizado sobre o género de natureza morta, já realizada por vários artistas desde a pintura à fotografia, permitiu-me caminhar por vários lugares. E cada imagem feita deu origem a um debate que avança tanto para usar o tema como suporte para questões tão perturbadoras como a discussão sobre a suspensão inanimada – talvez da morte – e a sua relação com o meu ser Negro, como para pensar sobre a história da arte ocidental. O processo colonial está constantemente sendo atualizado, tal como a arte. Quando li a pergunta pela primeira vez, pensei em citar casos de pessoas Negras assassinadas, no entanto, isso é atualizado com tanta força no Brasil que tem impacto no meu/nosso pensamento reproduzir apenas um gesto colonial e anti-vida – que é sempre o de ligar a morte à Negritude. Anseio por um caminho inverso que reorganize esta lógica. E há muitas frentes para que possamos desvendar a palavra morte (esta morte que ambos pensamos agora) à palavra que designa o homem Negro.

Entre tantos pensadores que poderia citar para falar da vida do Negro brasileiro, tenho as palavras da educadora Pâmela Carvalho – pensadora do complexo da Égua no Rio de Janeiro – que organiza propostas de políticas de vida e me lembra a grandiosidade da nossa existência, que não é apenas numérica, mas também complexa, verde, luminosa, acidentada, e confronta a narrativa colonial do espectro da morte como um destino. Desejo que o meu trabalho afine e dê o direito a uma narrativa onde a vida e as suas camuflagens permitam outras transformações. Nas imagens, as personagens quando aparecem camuflam-se à paisagem, a uma natureza transformada, a um território de estranha convivência. Este trabalho é sobre o poder da vida que habita o meu ambiente, os meus afectos. A natureza morta aqui é sobre a exposição das relações de uma forma perene e a imortalização das mesmas em imagem. Os estudos sobre a natureza-morta tratam de pensar o corpo, a pedra, o plástico, o mortal e o infinito, a natureza, a cor e a luz como uma coisa – viver num tempo em suspensão – onde o olho não percebe como traduzir a imagem para uma morte que não leva a outra existência. Cores abundantes e brilhantes, relações afetivas abundantes, um desejo que vibra sobre um silêncio e rasteja ou flutua sobre a própria existência da imagem.

Alguns territórios afro-diaspóricos no Brasil são extremamente negligenciados politicamente e socialmente. A realidade do Negro em países completamente polarizados nesses sentidos gera inúmeros danos ao seu passado, futuro e presente. A presença do racismo, em todos os seus significados, provoca perdas irreversíveis. Hoje a construção de uma identidade negra e o olhar para a memória passa a ser quase um ato político, social e resistente. Como você acha que as suas fotografias enaltecem isso?

Tenho trabalhado [na] busca de uma relação de afeto com quem quer que seja que eu fotografo, geralmente meus primos são os modelos em minhas imagens porque nossa amizade nos conecta em uma relação de confiança que promove caminhos a seguir a partir de um gesto auto-referencial até uma voz coletiva. Ser um corpo Negro neste mundo já é um ato político em si mesmo e as adversidades à nossa existência estão presentes. Entretanto, na micro-política promovida pelos Negros em relação a nós mesmos, vejo uma chave para pensar como meu trabalho atua nesta reconfiguração visual. O que faço é reproduzir tais ações, olhar para as paredes de minha casa e pensar em suas memórias, antes disso, observar as pessoas ao meu redor e como elas reafirmam a inventividade de sua existência. Pequenas coisas me interessam; o cuidado, a dobra de um lençol, a luz que entra na sala, a alimentação dos animais, o piso verde ou vermelho, o despertar para o trabalho de meus pais, os dizeres de meus avós e sua maneira de encarar a existência da comunidade em silêncio, na fé, ordenando segredos, fundamentos que se estabelecem com uma lógica indecifrável para mim. Espero que minhas fotografias façam as pessoas verem, mesmo que elas vislumbrem a si mesmas e seus mistérios. Assim, espero que as imagens que eu organizo nesse território sejam capazes de valorizar sua existência.

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